Revista QAP!: Reforma da Previdência, quem paga o pato?

Saiba o que está em jogo na reforma da previdência proposta pelo atual governo. Entrevistamos Fernando Rodrigues, advogado e especialista em previdência, começou a vida profissional como bancário e advogando para o Sindicato dos Bancários de São Paulo nas áreas de negociação coletiva, trabalhista, cível, previdenciária e tributária. Atual Superintendente do IPREM – Instituto de Previdência dos Servidores do Município de São Paulo. Foi presidente do IPREV – Instituto de Previdência dos Servidores do Distrito Federal, Secretário de Políticas de Previdência Social, Presidente e Diretor Administrativo Financeiro do IPREF – Instituto de Previdência dos Servidores Municipais de Guarulhos. 

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“Temos de saber o que é a previdência, como o nome diz: previdência de prevenção. O INSS se chama Instituto Nacional de Seguridade Social porque visa dar cobertura aos riscos a que o trabalhador está submetido em seu dia a dia em sua atividade profissional e quando do seu envelhecimento e com a perda de sua condição para o trabalho. Precisamos compreender um pouco essa lógica, que a previdência está ali para garantir o nível de renda à família e ao trabalhador quando este sofrer um infortúnio ou sobreviver à velhice.

Quando sofro um infortúnio ou acidente no caminho para o trabalho, tenho que ter um seguro para suportar esse risco. O plano de benefícios da previdência (auxílios, aposentadoria e pensões) foi desenhado justamente para cobrir esses riscos. Assim, percebemos que previdência está diretamente relacionada ao mercado de trabalho, especialmente aquele formalizado. Sem trabalho formal não há previdência, e não há previdência sem o porquê dessa relação.

Outro aspecto refere-se à dinâmica demográfica da população brasileira. Ele afeta o mercado de trabalho, a economia e, consequentemente, a previdência. Se considerarmos que temos menos gente entrando no mercado de trabalho, é também menos gente contribuindo e esta dinâmica afeta diretamente o caixa do INSS.

O atual modelo de financiamento da previdência é baseado em dois pilares, o regime de caixa e a solidariedade entre as gerações, assim, contribuições dos atuais trabalhadores são vertidas ao INSS para que sejam pagas as atuais aposentadorias, pensões e auxílios. Por esta razão, depende do aspecto demográfico e do mercado de trabalho, pois deve haver no mínimo quatro trabalhadores na ativa, empregados e contribuindo para a previdência para pagar o benefício do atual aposentado (inativo). Isto ocorre na expectativa que no futuro tenhamos o mesmo de número de trabalhadores para pagar a aposentadoria do atual contribuinte.

O Brasil está vivendo um momento crítico, o número de natalidade é menor e o tempo de sobrevida maior. É possível que no futuro não tenha gente o suficiente para pagar a aposentadoria dos trabalhadores que hoje estão na ativa.

A Previdência Social é um dos programas mais evoluídos que o ser humano fez para a proteção social. Passou-se por diversos conflitos e guerras para alcançar um modelo de ampla proteção social como este.”

Fernando Rodrigues

 

Por conta do problema demográfico e do envelhecimento da população, a reforma da previdência já é necessária ou ela será necessária no futuro?

Ela já é necessária há algum tempo para ajustes pontuais. Uma outra questão é debater se a previdência é deficitária ou não. Por trás desse debate há uma questão muito profunda, sobre qual a função primordial da previdência em nosso país em face do que dispõe a Constituição Federal. Vou dar um exemplo. Os chineses tem visitado o país para estudar o nosso modelo de seguridade social, porque eles querem implantar algo semelhante por lá. O modelo de proteção social chinês ainda está baseado na primeira fase da previdência, que é a família. A segunda fase é aquela que está baseada na acumulação de bens para extrair a renda necessária e garantir meu nível de renda quando não tiver mais condições de trabalhar. Somente a partir da Segunda Guerra estabeleceu-se na Europa o conceito de Estado de Bem Estar Social, sendo um sistema de proteção com três vertentes: saúde, assistência e previdência. Esse modelo foi incorporado na Constituição Federal de 1988, pelo qual a Saúde, em tese, deve ser garantida a todos independentemente de pré-condição, porque é financiada com tributos, sendo universal; a previdência, destinada àqueles que possuem capacidade contributiva e a Assistência Social, ao contrário, destinada para quem, além de não ter capacidade contributiva, tem necessidade da proteção social do Estado.

Percebe-se, então, avaliando o texto encaminhado pelo Governo ao Congresso, que a reforma se dá na Seguridade Social, pois afeta de forma direta ou indiretamente o modelo de proteção social. Se a reforma é necessária, o tamanho, sua extensão, quem serão os afetados e quem irá pagar a conta é que deve ser objeto de cuidadosa análise.

O que percebemos é que de certa maneira o governo tenta atacar vários aspectos do plano de benefícios focados na diminuição da despesa (regras de concessão de benefícios). Como ficam os aspectos relacionados à receita, como estão as isenções fiscais e a sonegação? A justificativa do Governo é o pagamento dos benefícios e a causa do déficit está correta?

Eu não diria tanto. Diria que o Governo está querendo resolver um problema de déficit corrente (falta de recursos em caixa) e justifica isto com a reforma mais profunda até agora, algo estrutural. É fato, está faltando dinheiro no caixa porque eu estou pagando mais benefícios do que arrecadando. Mas qual é a causa disso? O problema é econômico. Vamos pegar o ano de 2013, que é um ano neutro, o ano das grandes manifestações como base. Como estava a previdência? Já havia um problema, mas o crescimento econômico sustentava a situação. Estávamos vivendo quase em pleno emprego.

Há a necessidade de fazer uma reforma para uma futura geração de trabalhadores. Isso é um ponto de convergência. Mas isso não significa que ela vai dar o impacto financeiro necessário para resolver o problema, sob a ótica do Governo, no curto prazo. O que precisamos é que a economia volte a girar para criar emprego, gerar renda, para que essa renda seja tributada e possa formar o caixa e pagar o benefício.

Outra questão é a situação rural. Quando você pega a despesa contra a receita previdenciária e tira o setor rural, ela é superavitária. Quando eu coloco o rural, ela vira deficitária. Essa foi uma decisão tomada na constituição de 1988. Nós, como País, decidimos buscar fontes de receita tais como PIS/COFINS e outras, para financiar este tipo de despesa.

A reforma é necessária, mas o tamanho dela e quem vai pagar a conta é que está em discussão

Qual a importância deste tipo de política protetiva, isso tem a ver com evitar um êxodo rural?

Sim, justamente. 80% do que você consome vem da agricultura familiar. O Brasil é um grande produtor, mas o que você come não vem do agronegócio, vem da pequena agricultura familiar. É para essa realidade que foi montada uma estrutura de seguridade social como sua própria fonte de financiamento. Concordo que haja a necessidade de que o agronegócio contribua mais, talvez modificar as regras em relação ao setor rural, mas o que estão fazendo?

Quando aumento o tempo mínimo de contribuição para assegurar a aposentadoria, tenho de garantir que haverá trabalho para haver contribuição. Estão ampliando o prazo mínimo de contribuição de 15 para 25 anos e estabelecendo uma idade mínima, criando barreiras para que o trabalhador alcance o benefício da aposentadoria.

O Bolsa Família custa entre um e 1,5% do PIB, a previdência custa mais, mas ela tem um fator de distribuição de renda muito importante, 75% dos benefícios são equivalentes a um salário mínimo. Trata-se do maior programa de distribuição de renda da América.

Ademais, nosso modelo de tributação é regressivo, ou seja, quem ganha menos paga mais. Para exemplificar, para cada R$ 1,00 pago a título de benefício previdenciário, cerca de R$0,48 retornam ao Estado como tributo. No fim, quem faz o discurso é o pato da FIESP, mas quem paga é o trabalhador mais pobre.

Meirelles afirma que hoje temos cerca de 10 economicamente ativas para cada pessoa que recebe o benefício. Em 2060 a proporção será de 3 para 1. Essa linha então é a correta? 

Previsões muitas longas têm maior grau de incertezas. A previdência e a seguridade social são bem mais complexas do que o Governo quer vender. A questão é como distribuir o custo e o custeio de um programa dessa importância para a sociedade. Por exemplo, quem tem de pagar os subsídios para o setor rural? Uma parte desse subsídio não poderia ser bancado com tributação de grandes fortunas, já que isso é distribuição de renda? O agronegócio é altamente subsidiado e gera pouco emprego. Do modo como a reforma está sendo colocada, só resolve a questão de um plano de seguridade em cima do trabalhador, principalmente daquele socialmente mais vulnerável.

Uma aposentadoria por tempo de contribuição é maior do que uma aposentadoria por idade, que é uma aposentadoria, quase sempre proporcional. A título de exemplo, a maior parte dos servidores irá se aposentar com o benefício integral porque tem estabilidade no emprego. Algumas distorções precisam ser corrigidas. Veja o que ocorre no Rio de Janeiro, segundo noticiado nos jornais, o Estado tem 450 coronéis, 300 são aposentados e se aposentaram antes dos 50 anos. Cada um ganha em média R$ 20 mil. Pelas condições de vida deles, eles vão viver 80, 90 anos.

Quando eu olho para o setor rural, a Previdência é distributiva. Quando eu olho para certos setores da área pública, inclusive a militar, ela é regressiva, eu tributo o mais pobre e dou para o mais rico. Um milhão de benefícios previdenciários no regime, só da União, vai ter um déficit superior ao déficit causado pelos recursos que são destinados para milhões de pessoas.

Então a questão de saída é: como garanto emprego às pessoas para que elas tenham renda e possam ser tributadas? Senão elas não vão pensar em previdência, vão pensar em sobrevivência. Em segundo lugar, precisamos mexer na previdência de todos, inclusive a militar. Se previdência é reposição de renda, como uma filha solteira recebe pensão integral? Não se trata de previdência, mas sim de privilégio.

O que precisa é que a economia volte a girar para criar emprego, gerar renda

É o caso da pensão da Maitê Proença?

O pai dela era auditor do Estado. Quanto ganha um auditor? Os auditores, no passado, tinham regras de paridade e integralidade. Militares também têm isso. Eles entram para a reserva e continuam evoluindo na carreira. Parece coisa pequena, mas quando se somam todos os valores, nota-se que é uma quantidade muito grande de recursos. Ademais, quando o país está em processo de crescimento, certo tipo de exagero passa despercebido, sobrevindo à crise, as inconformidades saltam aos olhos da sociedade.

Então onde há buracos evidentes na previdência não vai haver mudança? Isso é uma questão política?

Trata-se de questão de quem tem maior capacidade de reação e de poder.

O governo vai pesar a mão onde há menos capacidade de reação?

É preciso que as pessoas entendam que é necessário garantir um ambiente de trabalho adequado e não posso tratar com uma regra uniforme pessoas que estão em situações desiguais. Não posso tratar uma juíza com a mesma regra que eu trato uma cortadora de cana. Isto não é direito e ofende a Constituição Federal.   »

Há propostas alternativas? Porque, nesse debate sobre se há déficit ou não, ganhou notoriedade a tese da Denise Gentil…

A Denise Gentil tem uma tese muito boa. Concordo em parte com ela. Do ponto de vista contábil posso demonstrar que eu tenho receita suficiente para pagar essa despesa. O que faz o governo? Em 1988 foi criado o sistema de seguridade e uma forma de financiar essa seguridade, como eu disse anteriormente. Durante os governos FHC, Lula e Dilma foi mantida uma regra chamada DRU – Desvinculação das Receitas da União. Eu crio uma lei que diz “vou desvincular parte dessa receita da seguridade” e utilizo isso para garantir o superávit primário. Quanto o Brasil pagou de juros ano passado? E quanto pagou de “déficit” da seguridade? Os juros que eu pago também fazem parte do nosso modelo concentrador de renda. Eu tiro do mais pobre para pagar juros. No fundo, o que a Denise está dizendo é que se eu fizer o que eles estão fazendo, vamos continuar pegando dinheiro desvinculado da seguridade.

Quando o Meirelles fala em teto para gastos públicos, não fala de teto para pagamento de juros. Essa é a questão ideológica de fundo: como eu reparto o bolo das receitas que o Estado arrecada.

Essa reforma tem um problema: aprofunda as desigualdades que nós temos no país; ela não vem ajudar a minorar as desigualdades

Então basicamente é que há uma fonte que financia a seguridade, inclusive a previdência, mas dessa fonte retiro parte e o resultado é a inviabilidade da previdência?

Como eu disse, a forma de interpretar o problema da Denise é uma. Eu avalio, com respeito à tese da Gentil, a previdência precisa passar por ajustes.

É um conjunto de medidas que precisam ser tomadas. São medidas nos benefícios? Sim. Por conta do envelhecimento da população? Sim. É necessário compreender o papel da mulher na sociedade? É necessária a convergência de regras entre os trabalhadores públicos e trabalhadores vinculados ao INSS? É necessário debater o papel da mulher no mercado de trabalho e na previdência, creio que sim. O Brasil vai continuar a proteger alguns segmentos da sociedade? Porque, por exemplo, não levamos em conta que a renúncia fiscal no meio esportivo é dinheiro ligado à previdência? O torcedor, que está lá no estádio vendo seu time, não faz ideia disso. São setores que têm isenções fiscais. A tributação dos setores intensivos em mão de obra (mais trabalhadores empregados, exemplo construção civil) tem que pagar pelo mesmo critério do que tem menos gente (exemplo bancos)?

Concordo que precisamos rever algumas dessas questões, mas tem coisas que estão sendo propostas que são importantes. Mas basicamente a questão é quem será atingido e quem irá pagar a conta da reforma.

Essas questões de fundo precisam de um pouco mais de detalhamento. O problema é que eles estão mexendo profundamente no programa da seguridade social e com métodos diferentes dos governos anteriores, que tinham fóruns em que as contas eram apresentadas e colocadas em debate. Temos que voltar à mesa.

Nesses fóruns então havia discussões sobre a especificidade de alguns setores?

Tiveram dois fóruns. Um fórum nacional de previdência em 2007 e outro em 2014. Porque fazer a reforma só aumentando o tempo de contribuição, sem fazer o devido debate, é manter ou ampliar as desigualdades do sistema;

Sou favorável a ajustes pontuais para a geração atual, uma regra de transição bem mais suave do que está sendo proposto. Devemos propor uma reforma ampla, um novo modelo para a geração futura de trabalhadores, precisamos preparar o mercado de trabalho. A reforma exige que os trabalhadores fiquem mais tempo trabalhando e contribuindo. E como fica o mercado de trabalho para os jovens trabalhadores?

A proposta do Governo está colocando mais barreiras para o benefício até o teto. Na prática aumento o tempo de contribuição, que aumenta minha receita e diminui a despesa com benefício pago. Eu acho que pensões por cota são factíveis, se você pensar que de duas pessoas vivendo de um benefício e uma delas morre, sob a lógica previdenciária, não há porque a outra continuar a receber na integralidade. Quando há convergência de regras para área pública é importante.

Segunda coisa importante é a não-acumulação de benefícios. O problema é como fazer o controle, não se sabe ainda que métodos podem ser usados para verificar se não há acúmulo indevidos de benefícios. É igual ao teto remuneratório. Quem obedece o teto remuneratório no Brasil? Hoje tem gente que ganha 60, 70 mil reais. Quantos benefícios da previdência pagaria um benefícios desses? Centenas!

No Brasil, na área pública, há certas castas que se apropriam do Estado e fazem regras para si próprios. Enquanto as informações e dados do regime geral de previdência são transparentes, você pode ver pela internet quantos benefícios foram concedidos no Estado de São Paulo, por tipo, sexo, idade etc. Na  área pública, apesar da Lei de Transparência, nem sempre a divulgação é feita, muitas vezes em uma linguagem cifrada.

No regime geral a questão é de tamanho. Pagamos por exemplo 400 bilhões de benefícios previdenciários para 26 milhões de pessoas de cerca de um salário mínimo. Qualquer aumento de R$ 10 no salário mínimo chama a atenção. Mas tem bilhões que são destinados a um grupo muito menor de pessoas e com uma repercussão muito grande no orçamento público. Essa situação precisa mudar, sob pena da situação do Estado do Rio de Janeiro se tornar um regra, em breve.

Quem ganha menos paga mais. No fim, quem faz o discurso é o pato da FIESP, mas quem paga é o trabalhador

 As reformas nas regras da CLT não visam desobrigar a previdência pública para abrir caminho para a exploração da previdência privada?

Esse é um debate que aconteceu nos anos 90, que é o modelo chileno, onde paga-se uma previdência por cota individual, de forma capitalizada. Você compra esse produto num banco ou numa seguradora. O modelo de previdência brasileiro é baseado no regime de repartição simples, ou seja, os ativos pagam os inativos, mas tem também os aspectos de solidariedade e do mutualismo. Ele distribui riscos. E mesmo com todas as reformas que estão sendo propostas, nenhum produto ofertado no mercado da previdência privada é melhor do que a previdência pública. Ela é boa e precisa de ajustes.

O modelo de previdência pública é impositiva porque o Estado arca com os riscos, mas impõe o custeio para todos, pois havendo risco pode haver o sinistro (acidente) desde que haja cobertura (plano de benefícios);

Tem gente na sociedade que consegue poupar sozinho e viver bem, mas a maioria das pessoas não. Desta forma, o Estado obriga adesão compulsória para proteção compulsória. É por isso que o aumento da expectativa de vida faz aumentar a idade mínima, porque é preciso calcular o tempo médio em que uma pessoa vai receber o benefício e quanto ela contribuiu para isso.

No Chile foi criada uma previdência individualizada, o problema é que hoje o que um chileno recebe de benefícios dessa previdência é o equivalente a R$ 170,00.

O problema é que do modo como a questão é colocada dá-se a entender que a previdência é inviável e isso não é verdadeiro. Essa reforma não faz alterações nas estruturas que causam os problemas distributivos. Uma reforma justa deve mexer também com os interesses de setores poderosos, mas existe condições para enfrentar todos os interesses contrariados?

Então sobra para o trabalhador menos organizado, e (essa) reforma não tem a intenção de esclarecer de forma didática o que está em jogo.